Quando deita no sofá, ajeita o corpo para os pés ficarem encaixados em cima beirando o chão. Se está na rua, firma as mãos na calçada, dá o impulso e torce para ter calculado certo a força e o espaço que há entre seu corpo e a parede. Acha melhor quando vê o mundo de cabeça para baixo, e acha graça, muita graça, mesmo não sabendo se é porque dá vontade de conversar com os pés ou porque a barriga desce pro nariz e faz cócegas.
Com os pés pra cima e a cabeça do lado oposto, observa os outros, as coisas, o céu, os bichos, tudo. De outro ângulo, olha com cuidado e delicadeza, como convém quando é preciso tentar entender o que nos é estranho, um diálogo dissonante, o exagero daqueles tempos, um quase desconhecido que se aproxima trazendo nas mãos todas as possibilidades do mundo, uma postura que você cansa de ouvir a explicação mas não entende, não consegue e então teima.
As costas esticam, o ar enche o peito daquela sensação boa de fim de dia com dever cumprido. O pescoço larga o peso do mundo no ângulo imaginário de 90 graus que o corpo forma com o chão.
Com o cérebro pendurado e os dedos voando, vai descobrindo o mundo, entendendo por que o sujeito dos óculos de grau embaralha os dedos quando fala ou aquela moça batuca o calcanhar quando conta da vida. Compreende, ao seu modo, os caminhos tortos do seu amor e ama ainda mais. Arrisca, e desta maneira garante que conhece verdadeiramente a personalidade alheia, porque acha que não é fácil disfarçar nem defeito nem qualidade quando tem alguém plantando bananeira na sua frente.
Faz sentido.
Adora ficar de ponta-cabeça, e até dorme às vezes, e ri quando assusta os outros ou acorda de bom humor, massageia o cabelo no azulejo e coloca pra fora as minhocas que habitam por ali. Sacode elas, pra ver se somem, porque minhocas atrapalham a vida da gente, roubam o sono, criam fantasmas, levam os queridos para o planeta dos sonhos perdidos, num lugar qualquer entre a Augusta e a Jerônimo Monteiro, perto da barraca de filmes de arte, mais perto ainda do boteco dos ovos coloridos.
Minhocas não servem pra muita coisa além de adubo e anzol.
[…] vezes é preciso afastar a posse, impedir as minhocas, lembrar e de novo e outra vez e uma última que amar e libertar são o mesmo ato, e então agir […]
[…] dias em que chove dentro da gente, mesmo que lá fora faça sol. As conversas não resolvem, as minhocas não sossegam, os sentidos andam num desencontro só, os ossos doem como o quê e nem as canções […]